a Argentina é um país racista
Um país racista que não se encara, que não assume seus erros, que deseja permanecer preso no pior ódio já inventado pelos humanos
Essa semana viralizou o vídeo de jogadores da Seleção Argentina cantando uma “música” racista contra os jogadores da França. Eu tive dificuldades de entender - não sei se pelo sotaque argentino que me parece sempre meio “embolado” ou se por pura negação -, mas estava lá, bem nítido:
Os maiores jogadores daquele país estavam reproduzindo o que a sua torcida - famosa não só pelo amor ao futebol, mas também pelo ódio aos negros - já faz há anos de forma descarada e impune. Estavam sendo racistas.
Eu amo a Argentina. É um país que é muito importante na minha trajetória política e intelectual, além de incontáveis memórias pessoais, na sua maioria muito boas. Mas também tenho uma memória pessoal muito dolorosa em solo argentino. Era 2018, eu estava lá pela primeira vez. Entrei num táxi com uma conhecida com quem trabalhava na época, ela negra retinta, e logo fomos expulsas. “Você eu não levo, vocês eu não levo”, dizia o motorista apontando principalmente pra ela.
Aquilo foi terrível, me desestabilizou bastante. Quase não tocamos depois no assunto, por uma possível vergonha que nem deveríamos sentir, mas sentimos. Mas fiz - e faço, sempre - questão de contar isso pra todo mundo. Ah você quer saber como é Buenos Aires? É uma cidade incrível, eu adoro muita coisa por lá, posso te passar uma lista de lugares maravilhosos, mas tem uma parte horrível também…, então aí eu conto.
Insisto que a Argentina é um país incrível, com diversos pontos positivos em sua história, cultura e política. Porém, não dá pra esconder o elefante debaixo do tapete. A história, a cultura e a política argentinas também estão impregnadas de racismo. Isso fica evidente na naturalização desses episódios e no silêncio e cumplicidade de grande parte da sua população.
Indignada com esse novo episódio de fascismo dos jogadores brankkkos argentinos, justamente por ser algo que foi feito pelos próprios atletas - o que, ao meu ver, é muito mais grave do que quando exercido pela torcida -, encontrei essa explicação do antropólogo José Garriga Zucal:
“O ponto mais interessante e necessário é que os argentinos não se consideram racistas. Não tem uma reflexão profunda sobre o racismo. Só um punhado de intelectuais, de políticos progressistas e cientistas sociais colocam essa questão na mesa. Isso é central para entender a Argentina”
Durante a final da Copa América, o Twitter ficou cheio de comentários xenófobos e racistas, onde pessoas da Argentina atacavam a população colombiana não pelo seu futebol, mas pelas suas características físicas e por uma suposta “malandragem” dos colombianos. Algo muito parecido com o que vemos quando o oponente da Argentina é o Brasil. E a sede racista dos argentinos é tão grande, tão insaciável, que os jogadores decidiram reproduzir o canto racista contra a França (que, como vocês podem imaginar, nem participa da Copa América).
Algo de muito raro deve passar na cabeça dos argentinos brancos, que acham que são mais europeus do que os franceses negros. Deve ser algum tipo de surto psicótico acentuado com toques de frustração e inveja, que acomete todas aquelas e aqueles que pisam em Buenos Aires imaginando que estão em Paris. Acho que isso explica a mentalidade torta de boa parte dos hermanos. É uma raiva que provavelmente surge da constatação de que nunca serão aquilo que tanto querem ser.
A cidadania europeia até pode ser conquistada, mas ser visto e reconhecido integralmente como europeu é algo inalcançável e inatingível, que consome a saúde dos racistas latinoamericanos, pois eles se veem obrigados a encarar aquilo que eles realmente são e sempre serão. Estrangeiros, imigrantes, intrusos. Agregados à sociedade, mas nunca parte da sociedade.
A França possui um longo histórico de políticas racistas para dentro e para fora do país. Foram séculos de colonialismo no continente africano, com impactos negativos que perduram até hoje na vida de milhões de pessoas. Porém, a França também é um país que admite seus preconceitos e que tenta - ao menos por parte expressiva da população - lidar com eles. Os milhões de votos na Nova Frente Popular podem servir de exemplo.
A França tá viva, tanto na sua diversidade atual quanto na sua tentativa de lidar com seu passado macabro e nem sempre tão iluminado. A Argentina, por outro lado, está meio morta. Um país quebrado, que se projetou como politizado mas que elegeu um fascista, que possui pouquíssima diversidade racial (o que é motivo de orgulho para grande parte da população) e que teima em não lidar com seu passado violento com negros e indígenas. Passado esse que se faz presente a cada novo campeonato internacional de futebol.
Eu amo a Argentina, mas agora não importa o que eu sinto afetivamente. Importa o que eu vejo politicamente (e que, obviamente, também me afeta). A Argentina é um país racista. Que isso não se esqueça, que isso não se apague, que isso não se esconda. A Argentina é um país racista. E assim precisa ser apontada, até que a questão seja encarada e resolvida.
:))
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Lana, que texto maravilhoso. A Argentina é terrível mesmo nesse aspecto. Uma amiga morou lá e, na época, era casada com um chileno. Ela contava que o marido era apontado e xingado na rua constantemente. E ela, brasileira e baiana que não levava desaforo pra casa, sempre rebatia, xingava de volta, chamava de racista. "um bando de lascado que não tem o que comer falando de meu marido? Que não toma banho direito? Não ficava quieta não, amiga". Era por volta de 2009, 2010...e a Argentina já estava em crise econômica.
Lana, esse problema do racismo tem uma raiz muito colonial européia mesmo. E pode expandir esse sintoma para cima no globo: Uruguai, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. (Sou paranaense então conheço as cria)
Eu mudei pra Londres tem um tempão e um amigo de infância la do meio da roça paranaense veio me visitar. Durante uma passeada em um bairro rico, ele larga o um petardo tão racista e desgraçado que minou nossa amizade para sempre: "Tem bastante preto aqui né?"
Passou um conversível caro, esportivo, com outro preto dirigindo: "Deve ser jogador de futebol"
Aqueles comentários estavam tão entranhados em uma cultura racista que a vivência dele era sempre justificar o não óbvio com esses disparates justificados.
Tenho uns parentes em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Esse sintoma da 'descendência de senhor de engenho madeireiro bandeirante do sul' é entranhado nos pequeninos detalhes e comentários que furam como umas pulguinhas invisíveis, mas que estão sempre incomodando.
Ah, com relação ao amigo de infância: nossa amizade morreu uns meses depois por divergências religiosas e políticas.