transfobia transnacional
A manchete da Folha diz "Brasil tem um novo projeto de lei antitrans por dia". Ok, eu leio, meus olhos enchem d'água. Logo penso que se a tragédia é transnacional, a resistência também precisará ser.
O Brasil sempre exige o dobro de cada uma e cada um de nós. Temos projetos de lei para derrubar. E, ao mesmo tempo, temos um projeto de vida e de cidadania para defender. E eu, que nem sei como vim parar aqui, só queria ir embora.
A manchete da Folha diz “Brasil tem um novo projeto de lei antitrans por dia”. Vi esse levantamento no meio da tarde, depois de tomar um café. Fiquei olhando pra tela, meus olhos se encheram d’água. Meu peito apertou de desesperança. Fiquei pensando nas breves quase-oportunidades que tive de sair do Brasil, mas que não agarrei por medo ou por falta de crédito em mim mesma. Já são 69 projetos de lei, apenas em 2023, para limitar ou retirar direitos de pessoas trans. Talvez já seja mais de 70 quando você ler isso.
No Canadá as pessoas LGBTs estão num outro patamar de cidadania, por que eu não estou no Canadá?, pensei nisso agora.
É um consenso mundial, entre cientistas políticos e internacionalistas, que as pessoas trans são, hoje, um dos alvos preferenciais da extrema-direita. Em países como o Brasil, onde migrantes e refugiados despertam menos rejeição que em países desenvolvidos, resta às pessoas trans a carga de estarem na mira de quase todo o ódio criado para entreter e despolitizar as massas.
É, em outro país eu seria também migrante além de ser trans. Pesado demais para um momento de ascenção fascista, talvez. Pensei nisso agora, pra me conformar.
Não precisa falar da corrupção, fale das pessoas trans. Não precisa falar das joias milionárias da ex-primeira-dama, fale das pessoas trans. Não precisa falar da volta da fome e da desigualdade, fale das pessoas trans. Não precisa falar de como as reofrmas neoliberais e as privatizações fizeram o Brasil retroceder décadas, fale das malditas pessoas trans! Assim, apontando para as pessoas trans, os eleitores se distraem e se divertem, e não precisam encarar as contradições e hipocrisias de seus representantes eleitos.
Eu entendo a lógica da extrema-direita. Quando você não possui alternativa a oferecer, quando não existe proposta de melhoria de vida, você precisa desviar a atenção e manter o seu público engajado. E isso dói. Dói saber que a minha vida, nossas vidas, são as piñatas da sociedade. Eu não quero servir de engajamento pro ódio.
Eu não lembro de ter feito nada para ter me tornado um alvo do pânico moral. Eu não sei o que as pessoas que são como eu fizeram para serem tão desumanizadas, culpabilizadas e perseguidas. Eu não entendo como que se elenca quais humanidades são dignas de direitos e quais não são.
Sair do Brasil é uma vontade, mas hoje falta oportunidade. Ficar no Brasil é, portanto, uma necessidade. E, embora o desejo de experimentar outras vivências e culturas seja constante, eu não me iludo. Sei que em qualquer lugar do mundo possuir esse corpo é uma afronta. Pessoas trans estão na mira em qualquer país, em maior ou menor proporção. Mesmo no Canadá. Não existe perfeição sob o capitalismo.
Vejam bem, sair do Brasil não seria um escape. Até porque eu considero impossível sair do Brasil e deixar de lutar pelo Brasil. Acompanho, entre amigas e pessoas conhecidas, a angústia dos migrantes, que, ao contrário dos falsos patriotas de verde e amarelo, nunca abandonaram o barco, mesmo com a distância. Mas me pego nessa confusão de sentimentos, de estar aqui sem querer estar. De estar aqui diante do monstro que cresce e que está afiando os dentes. De estar aqui atenta ao que aqui acontece e ao mesmo tempo, na minha curiosidade sem fronteiras, observando as batalhas que também se encampam em outros países.
O tempo todo entre lamentar o que acontece por aqui, enquanto me solidarizo com outros campos de batalha. Me sensibilizo com Diana Sacayán, com Iyanna Dior, com Brianna Ghey. O tempo todo me equilibrando entre denunciar e não sucumbir.
E uma coisa é certa: se a escalada de ódio e perseguição está articulada internacionalmente, como mostram várias pesquisas que indicam que a extrema-direita mundial está profundamente unida, então a resistência também precisa ser internacionalizada. Não cabe mais fechar os olhos para as mazelas dos outros, apesar de já ser tão difícil lidar com as nossas.
Guardadas as devidas particularidades e conjunturas, as pessoas trans do Brasil estão enfrentando desafios discursivos e políticos muito parecidos com os das pessoas trans do Reino Unido. A extrema-direita está forte no nosso parlamento, assim como tende a crescer no parlamento chileno. O Partido Liberal nos oferece tanto perigo quanto o VOX e o Chega também oferecem na Espanha e em Portugal.
A luta é desequilibrada, é injusta. E por isso mesmo, pela desproporcionalidade que cai sobre nossas cabeças, precisamos nos ouvir, nos articular, nos mobilizar. Sim, você que tá aí me lendo, mesmo que talvez você não seja uma pessoa trans. O feminismo só faz sentido se for coletivo. E a defesa das vidas trans, mais do que nunca, precisa ser uma luta de todas as pessoas de bem, em qualquer lugar do mundo.