uma questão de fé
Cresci católica, hoje acredito nos Orixás e gosto muito da Igreja Anglicana. Religiosidade, pra mim, é uma cebola com suas camadas.
Algumas das minhas melhores memórias de infância envolvem, de alguma forma, a fé. Ou a religião católica, na verdade. Sair pra pegar doce, no Dia de São Cosme e São Damião, por exemplo, foi das melhores coisas que já vivi. Várias crianças juntas (na época chamávamos de “mulão” essa algazarra), andando quilômetros, literalmente quilômetros, pelas ruas de São Gonçalo, parando em várias casas, correndo e formando fila pra pegar o saquinho recheado de maria-mole, pipoca de arroz (carinhosamente apelidada de “cocô de rato”), balas, pirulitos, mariola, pé de molque e doce de abóbora. Era uma alegria sem fim. Inclusive, sair pra pegar doce era muito mais satisfatório que comer o doce, que depois acabava se acumulando num pote em cima da geladeira.
Outro momento que guardo com bastante alegria foi a catequese. Eu tinha ido com minha irmã numa igreja evangélica que ela frequentava. Participei da escola dominical e pouco tempo depois minha mãe me matriculou na catequese, na igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, Engenho Pequeno, São Gonçalo. Era criança, mas não era boba. Percebi que minha mãe se movimentou para que eu não entrasse para a igreja evangélica, pois acho que pra ela já bastava uma filha ter seguido esse caminho. Minha mãe, assim como milhões de brasileiros, se define como católica, mesmo sem frequentar muitas missas ou participar de atividades rotineiras da igreja. O conceito de “católica não-praticante” que nosso povo inventou.
E minha mãe, assim também como muitos e muitos brasileiros, sempre demonstrou não ter grande paciência com os evangélicos. Embora minha irmã, preciso dizer aqui pra ser justa, nunca se enquadrou na ideia de “crente chato” que existe no imaginário popular. Pelo contrário, ela rompe, em vários sentidos, com a imagem caricata que ainda existe sobre as/os pentecostais e neopentecostais.
Mas o fato é que eu cresci sendo católica. Foi divertido fazer a catequese e a primeira comunhão. No geral acho que nunca deixei de me identificar enquanto católica, embora, por inúmeros motivos, acabei não participando de mais nada da igreja.
Ultimamente tenho pensado bastante sobre fé. Eu sou uma mulher de fé, mas a questão é: onde você enquadra sua fé quando você é uma mulher trans?
A resposta mais fácil, mas óbvia, tende a me guiar para algum terreiro de religião de matriz africana. O candomblé e a umbanda sempre foram mais inclusivas com a diversidade, é verdade, embora nesses espaços também existam resistências ao “novo”. Acho importante que a gente olhe as religiões, todas elas, não como grandes espaços iluminados de pura sabedoria, mas também como reflexos da nossa sociedade. Espaços para exercer a espirtualidade são também espaços influenciados pelo externo, ao mesmo tempo em que eles são fundamentais para promover mudanças nessa mesma sociedade. É dialética, como diria o profeta Marx.
E por ser mais fácil e mais óbvio, enquanto uma pessoa trans, olhar com atenção pras religiões de matrizes africanas, que eu fui aos poucos rompendo uma série de preconceitos muito fortes que habitavam em mim. Tenho a memória, ainda da infância, de ir ao menos uma vez com minha mãe num terreiro. Não lembro do ritual, não lembro de nada concreto. Mas lembro do medo que senti. Ali já estavam impregnadas em mim ideias e pré-conceitos sobre a “macumba”. Hoje, adulta, isso mudou. Tenho profundo respeito pelos Orixás. Tenho fé neles, embora não seja uma grande conhecedora. Acredito que, de alguma forma, eles moldam e guiam meus dias e os dias da minha família.
Porém, fé não é física. Não é matemática. Cabem várias nuances dentro de uma cabeça e de um coração humanos. Ter, hoje, esse carinho e respeito com os Orixás e com o Axé, não mudou minha base de crença em grande parte daquilo que me foi apresentado pelo catolicismo. Talvez seja um traço colonialista, talvez seja memória afetiva. Mas o fato é que o cristianismo ainda existe em mim, por mais contraditório que isso possa ser para uma pessoa que, de uma forma ou de outra, já teve sua dignidade ameaçada por parte significativa dos bondosos cristãos.
A Igreja Católica ajudou a moldar o mundo que conhecemos, com seus valores historicamente conservadores. Perseguiu, criminalizou e matou. Tudo em nome de Deus. E, obviamente, a Igreja de Roma não foi a única que cometeu atrocidades pelo mundo, mas é a maior de todas e, por muito tempo, foi uma religião imposta pelo mundo, suprimindo, inclusive, outras religiosidades que também pudesem ser tóxicas em suas épocas e territórios. Ao mesmo tempo, o catolicismo é uma crença que se mostra viva e em disputa. As articulações das Católicas Pelo Direito de Decidir e da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT+ mostram isso. A nível internacional, tem o Catholics for Choice e outros inúmeros grupos de católicos que militam pelos direitos de pessoas LGBTs.
Tem também a Igreja Anglicana, a chamada Igreja da Inglaterra, que nasceu séculos atrás à partir de um rompimento da coroa britânica com a Igreja de Roma. E, embora contemporânea do movimento protestante, a Igreja Anglicana conseguiu fugir do conservadorismo ainda maior que foi se formando e torno dos grupos evangélicos. Hoje, entre as religiões cristãs, talvez seja a que eu mais tenho proximidade. Em 2023, Bingo Allison se tornou a primeira pessoa trans a ocupar uma posição de poder na congregação. Aliás, a própria Igreja debate internamente a ideia de “um deus que não é masculino nem feminino”.
Há 10 anos, em 2014, a Igreja Anglicana permitiu que mulheres se tornassem bispas. Vinte anos antes, em 1994, elas puderam se tornar sacerdotisas. Em 2020, aqui no Brasil, Alexya Salvador se tornou a primeira reverenda trans da América Latina, exercendo função na Igreja Contemporânea, mas nomeada na Igreja da Santíssima Trindade, sede da Igreja Anglicana em São Paulo. E em 2017 teve muito barulho quando a Igreja da Inglaterra disse, num guia contra o bullying por orientação sexual, que “meninos devem ser livres para usar saias sem preconceitos”. O documento defende que professores evitem rótulos sobre os comportamentos das crianças que não estejam “de acordo com os estereótipos de gênero”. É uma igreja cristã viva, atenta ao mundo ao redor, que demonstra algum nível de preocupação em não repetir todas as violências construídas e exercidas, há séculos, pelo cristianismo.
No último fim de semana, vendo o especial da Maria Bethânia e do Caetano Veloso que foi ao ar no programa Caldeirão, apresentado pelo Marcos Mion, fiquei fascinada com a fala da Regina Casé, que é uma pessoa que eu gosto muito. Ela falou sobre ter tido uma criação mariana, de muita fé em Maria, mas que na medida em que foi crescendo e se tornando uma artista, essa fé foi perdendo espaço. Os demais artistas provavelmente eram ateus ou possuíam outros credos, e ela, cristã, se viu um tanto desligada daquilo em que acreditava. Até que ela conheceu Dona Canô, mãe de Bethânia e Caetano, que foi fundamental para que ela voltasse para aquele lugar que lhe era espiritualmente familiar. E também através de Bethânia, que é do candomblé, ela se deixou encantar pelo Axé.
Fiquei pensando nessas expectativas que existem sobre nós. Se você é artista, se você é LGBT+, se você é uma/um intelectual, se você, se você, se você…etc. Como a gente, na ânsia de mostrar que somos politizadas, antenadas e engajadas, muitas vezes simplesmente nos afastamos de coisas (ou momentos, ou crenças, ou rituais) que fazem algum sentido pra gente. Quando talvez o ideal seria, no caso das religiões e da fé, filtrar o quê daquilo realmente possui conexão e diálogo com você.
Sei que as ideias e conceitos sobre isso são amplas e diversas, mas, pra mim, ter alguma fé (ou não ter nenhuma) é uma questão de escolha. É o consciente que abre espaço ou não para o espiritual. É a cabeça que te permite ou não sentir. É o pé no chão que te leva ou não para um outro mundo em busca de sentido, significado e conforto.
Por isso, eu escolho ter a minha fé, que não se enquadra hoje na caixinha de nenhuma religião, mas que dialoga com algumas. Com as escolhas que faço de algumas, dentro daquilo que faz sentido para a minha vida. Escolho acreditar, diariamente, que Deus está em todo canto, está em todo mundo. Então, se assim é, pois assim acredito que seja, Deus está também nesse meu emaranhado de crenças, que convivem, pelo menos aqui dentro, em harmonia.
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Que lindo, Lana.
Lembrei do personagem da série Sex Education que vive um dilema por ser um homem gay e de fé cristã.
Sobre evangélicos, está no meu radar o livro O PÚLPITO: FÉ, PODER E O BRASIL DOS EVANGÉLICOS, de Anna Virginia Balloussier.
Beijos!!!