J. K. Rowling, uma representante da nova extrema-direita
Antes conhecida pela sua escrita infantil, hoje a britânica é porta-voz das políticas conservadoras antigênero e lgbtfóbicas
“Ao ter o gênero como alvo, alguns proponentes dos movimentos antigênero afirmam estar defendendo não apenas os valores da família, mas os valores em si; não apenas um modo de vida, mas a vida em si. O fantasma que alimenta as tendências fascistas é aquele que busca totalizar o campo social, infundindo na população o medo quanto a seu próprio futuro existencial - ou melhor, explorando medos existentes e dando uma forma totalizante à ‘causa’ deles.”
Judith Butler, em Quem Tem Medo do Gênero?
Não vou, aqui, falar da escritora J. K. Rowling. Essa já é bastante conhecida, popular e se fez bilionária à partir dessa função. Em 99% dos resultados do Google, ao pesquisar seu nome, é a faceta “escritora” que estará sendo retratada. Contudo, isso tem começado a mudar, principalmente no Norte Global, com destaque para os Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, onde o nome e a imagem de Rowling tem sido ligados, cada vez com mais frequência, à persona que ela tem assumido ser: uma disseminadora de discusros de ódio, defensora de políticas segregacionistas contra pessoas trans e entusiasta da lgbtfobia.
Uma figura de extrema-direta. É sobre essa J. K. Rowling que escrevo aqui hoje.
JKR é uma mulher branca, cisgênero, heterossexual e rica. Muito rica. Como é de costume com esse perfil - talvez diante do tédio e do vazio existencial muito comum entre pessoas extremamente ricas - ela buscou uma causa para chamar de sua. Poderia ter sido a questão climática, como fez Bill Gates, ou o encarceramento em massa de jovens negros, como Kim Kardashian. Mas não, JKR preferiu algo que aparentemente possui mais capilaridade no país onde nasceu e foi criada: a transfobia. Mas calma, calma. Chamar assim fica feio, fica muito explícito, então vamos elaborar de uma forma mais polida: Joanne Rowling decidiu se engajar, supostamente, na defesa das mulheres. [risos da plateia]
O patriarcado existe, é real e possui um peso enorme sobre a cabeça e a vida das mulheres. Portanto, se faz sim necessário, ainda hoje, o feminismo e todo tipo de luta que vise a libertação feminina dos diferentes tipos de violência de gênero. Mas, como já falei em outra oportunidade, recentemente a pauta de defesa dos direitos das mulheres tem sido instrumentalizada, infelizmente, para a propagação de discuros e de políticas de ódio contra outros grupos, principalmente a população trans.
Ainda em 2019, o público do Twitter começou a perceber que JKR estava curtindo posts que eram um tanto agressivos com a comunidade LGBTI+, com foco num maior ataque às pessoas trans. Logo depois, a própria JKR começou a escrever tuítes que questionavam a legitimidade das mulheres trans. Sob o pretexto de “defender as mulheres” de um suposto perigo, ela começou a se posicionar contra a possibilidade das pessoas trans usarem banheiros públicos de acordo com suas identidades de gênero. Afinal, supostamente, isso colocaria as ~mulheres de verdade~ em perigo. Com base em nenhum dado, com base em nenhuma estatística, JKR começou a difundir a ideia radical de que o grande perigo para as mulheres cis seriam as mulheres trans.
E nesses casos, onde os direitos das minorias são minados pelas maiorias, a fórmula sempre se repete: pegue algum caso específico - de uma pessoa trans que tenha sido violenta com uma pessoa cis, por exemplo - e use esse caso como alegoria para demonstrar uma suposta necessidade de cercear a cidadania de toda aquela população. Quando se trata de desumanizar e marginalizar algum grupo oprimido, o opressor sempre usará a exceção como regra e a regra como exceção. É como no caso das cotas raciais, onde os racistas usam qualquer notícia de fraude para tentar desqualificar uma política pública histórica, que foi arduamente defendida e conquistada pelo movimento negro brasileiro.
Todas as pesquisas, dados públicos e estatísticas apontam que a maioria das mulheres, na maior parte do mundo, estão muito mais sujeitas a sofrer violência (física e sexual) dentro de suas próprias casas, sendo vítimas principalmente de namorados, amigos, pais, irmãos e parentes próximos. Se a rua e o banheiro público oferecem um perigo ou criam uma sensação de insegurança, é dentro de casa onde, na maioria das vezes, essa violência se concretiza. Também estatisticamente, não há nada, absolutamente nada, que aponte que mulheres trans sejam um perigo maior para as mulheres cis do que qualquer outro grupo, inclusive outras mulheres cis.
Acostumada a escrever sobre mundos imaginários, J. K. Rowling parece ter criado sua própria fantasia, onde os homens cis são poupados de denúncias e de críticas e onde as mulheres trans (e as pessoas trans como um todo) são as grandes vilãs do planeta. Um mundo onde ela, a bilionária branca, europeia, cis e hétero é uma pobre vítima e onde as pessoas trans (que possuem baixa expectativa de vida e estão sujeitas à marginalização e sub-empregos no Reino Unido, no Brasil e em todo canto do planeta) são as poderosas algozes. Isso, que chamam de “feminismo radical”, tem um nome real: fascismo.
O portal Vox.com fez um questionamento: JKR é transfóbica? E eles responderam essa pergunta apenas com tuítes escritos por ela própria. É possível conferir aqui.
O youtuber britânico e ativista LGBTI+, Jamie Raines, fez um vídeo recontando cada passo dado publicamente por Rowling, no caminho para o radicalismo. Infelizmente, nesse momento em que escrevo esse texto, o vídeo ainda não possui legendas em português, mas ele traz um importante ponto: o radicalismo e o discurso de ódio de JKR não surgiram da noite para o dia, nem foram expostos publicamente de uma hora para a outra. Ela foi testando, medindo a temperatura, percebendo qual seria o nível de “cancelamento” que receberia. E aí, acrescento eu, ela percebeu duas coisas:
Muitos de seus antigos fãs, que possuem um forte afeto por sua obra, e que ainda hoje, mesmo adultos, não conseguem desapegar desse mundo encantado criado por ela, são fieis. Na ânsia de defenderem JKR, eles começaram a falar da importância de “separar a obra do artista”, como se tudo que ela estivesse fazendo, em tempo real, contra pessoas trans, fosse algo do passado. Como se ela tivesse cometido um erro e se desculpado sinceramente por esse erro. Como se as palavras - e atitudes - dela não tivessem um impacto concreto na vida de seres humanos. E aí é interessante percebermos como que, muitas vezes, essa ideia de “separar a obra do artista" é, na verdade, apenas a tentativa de continuar consumindo conteúdos produzidos por figuras asquerosas e até mesmo perigosas, eliminando o peso na consciência.
JKR se deu conta de que, na medida em que ia subindo o tom no ataque às pessoas trans, ela ia conquistando novos públicos. Um novo círculo de fãs foi se formando ao seu redor. Sem relação com a literatura produzida por ela, sem relação com os filmes que foram adaptados de sua obra, sem relação com nada de relevante que ela tenha feito no campo da arte. Mas numa total relação com o ódio produzido e espalhado através da sua nova linguagem, que não é infanto-juvenil, mas reacionária.
Aí, diante da defesa idiotizada de antigos fãs, e do surgimento de novos seguidores alinhados com o pior da internet e da política, JKR se sentiu à vontade para parar de fingir que se importava. Ela não se importa. Não com as vidas trans. Não com os direitos da população trans e LGBTI+. Não com as mulheres. Não com nada que não seja a promoção de uma sociedade mais conservadora, onde os “papéis” do homem e da mulher sejam elencados puramente de acordo com a biologia, reafirmando o tempo todo quem é supostamente (e automaticamente) mais forte e quem é mais fraca, quem manda e quem obedece.
Se utiliza do ódio às mulheres trans e travestis para a reafirmação de uma outra ideia: pessoas com pênis são superiores, pessoas com vagina são inferiores. Nessa lógica, portanto, ~mulheres de verdade~ serão sempre mais frágeis, mais fracas, mais burras etc, que ~homens de verdade~. A transfobia e a misoginia caminham juntas, num processo que desumaniza a população transgênera enquanto inferioriza as mulheres cisgêneras.
Não, não é sobre proteger as mulheres
Como pontuei acima, a questão de “proteger as mulheres” é uma falácia quando apresentada por certos grupos. E essa falsidade narrativa tem sido fundamental para a sustentação e expansão do chamado “feminismo radical” (conhecido como “rad” ou “radfem”) e das TERFs (que é a sigla em inglês para “feminismo trans-excludente”) ou ainda das “críticas de gênero”, que é o termo que elas mais tem usado recentemente, pois lhes confere um aparente ar intelectual, quando na verdade o termo também caberia facilmente em Damares Alves.
Diante da impossibilidade de simplesmente defenderem que pessoas trans sejam classificadas como cidadãs de segunda categoria (como ocorria até pouquíssimo tempo), se fez necessário a elaboração de toda uma teoria que se finge de progressita (“libertar as mulheres do patriarcado”), mas que é profundamente conservadora (“pessoas trans precisam ter menos direitos e serem excluídas de alguns espaços da sociedade”) e, muitas vezes, explicitamente fascista (“pessoas trans são um perigo e deveriam ser eliminadas”).
Algo que chama a atenção em J. K. Rowling e em diversas outras figuras proeminentes do “feminismo radical”, ou que dialogam com ele, é a diferença abissal de energia gasta em temas que são históricos do movimento feminista, como a defesa do direito ao aborto e o combate ao feminicídio; e o que eu defino como Temas do Ódio, que são os ataques contra as pessoas trans ou contra as pessoas cis que se colocam como aliadas das pessoas trans. Enquanto os primeiros temas aparecem pontualmente (principalmente enquanto resposta quando são provocadas a falar sobre), os Temas do Ódio são onde elas mais demonstram gastar seu tempo e intelecto, principalmente nas redes sociais.
Numa pesquisa rápida é possível ver que JKR não cita o nome de Donald Trump desde 2018. Ela o criticava com muita firmeza em 2016 e em 2017. Em 2018 isso aconteceu poucas vezes, falando principalmente da relação dele com o Brexit (nada nunca sobre o comportamento dele com as mulheres e o perigo que ele representa para esse grupo). Sobre a influência dele na revogação do direito ao aborto nos Estados Unidos, nada. Nenhuma postagem dela alertando ou mobilizando as mulheres sobre o que Trump simbolizava ali, principalmente após ele indicar juízes ultra-conservadores para a Suprema Corte estadunidense.
Ao mesmo tempo, quando o assunto são homens trans grávidos, JKR possui inúmeros posts, feitos com cada vez maior frequência e maior fervor, sempre contra os direitos desses gestantes ou os deslegitimando enquanto homens.
Aliás, supondo que a grande “defensora das mulheres”, que tuíta diariamente com muita assiduidade, não vê Donald Trump assim com tanta importância nos perigos para todas as mulheres ao redor do mundo, vamos ver o que ela tem a nos dizer sobre a defesa do direito ao aborto num sentido amplo: aí existem apenas TRÊS tuítes dela falando abertamente que defende esse direito reprodutivo, sendo dois em 2017 e um último em 2022, que [ora ora que surpresa] ela fez como resposta após ser provocada por uma outra internauta.
E eu estou usando o direito ao aborto para demonstrar a ambiguidade de JKR e das “críticas de gênero”, pois sem dúvidas o aborto é a maior questão que os conservadores usam, historicamente, para atacar as lutas de todas as pessoas com capacidade de gestar. Os direitos reprodutivos de mulheres cis, homens trans e pessoas não-binárias nascidas com útero estão sempre ameaçados. São direitos que precisam ser defendidos por toda a sociedade e é no mínimo estranho, muito estranho, que qualquer pessoa que se entenda como “feminista” se cale ou fale do assunto apenas após ser provocada por terceiros. É como alguém se dizer ambientalista, mas ter citado “mudanças climáticas” apenas três vezes nos últimos 7 anos.
Porém, os problemas não se encerram nos tuítes da autora infantil. Ela tem financiado, nos últimos anos, diferentes organizações que “defendem os direitos das mulheres”, embora, na prática, essas organizações atuem muito pouco (ou nada) no acolhimento de vítimas de violência ou em campanhas de conscientização sobre direitos femininos. A principal (ou única) atuação dessas organizações é lobby político para influenciar os parlamentares do Partido Conservador britânico e alguns do Partido Trabalhista a mudarem as leis locais para que se restrinjam os cidadãos por elas contemplados, impedindo assim que pessoas trans e suas famílias possam ter alguns direitos.
Uma mulher trans vítima de violência doméstica, por exemplo, não poderia receber um auxílio do governo, por não ser ~mulher de verdade~. Ou os casos dos bebês e crianças pequenas, filhas de homens trans, que não possuem certidão de nascimento, pois as leis britânicas (fortemente influenciadas por conservadores e “críticos de gênero”) são baseadas apenas na biologia em questões parentais.
JKR também tem diretamente atacado uma conquista da população LGBTI+ da Escócia, que faz parte do Reino Unido. Após anos de reivindicação popular, o parlamento escocês aprovou uma Lei Contra Crimes de Ódio, elaborada para proteger minorias sociais, como negras e negros, latinas e latinos, árabes, migrantes e refugiados e dissidentes de gênero e de sexualidade. Uma lei para ser comemorada, principalmente num cenário onde os legislativos dos países ocidentais tem sido usados, em grande parte, para atacar os direitos desses grupos. Mas JKR não ficou feliz com essa lei, vejam só. A simples ideia de alguém ser punido por atacar uma pessoa trans fez ela tremer. E ela tem tentado, até o momento, mobilizar sua base de “críticas de gênero” para que o parlamento britânico vete essa lei escocesa.
Enquanto isso, na Escócia, muitos gays, lésbicas e bissexuais, que apoiavam a retórica antitrans e antigênero de JKR, acordaram e perceberam que eles também estão em sua mira. Atacar o movimento trans é apenas a ponta do iceberg de uma ideologia de ódio que há décadas tem tentado destruir a comunidade queer - até o momento sem sucesso. As pessoas trans serem nesse contexto o maior alvo não significa, de forma alguma, que elas sejam o único alvo.
Agora, algumas perguntas: ao financiar grupos conservadores, que dialogam diretamente com políticos conservadores, os ajudando a ganhar popularidade e engajamento entre suas bases também conservadoras, não está se fortalecendo o conservadorismo? Como esse conservadorismo vai afetar os direitos das mulheres cis e de todas as demais pessoas LGBTs? Quando se alimenta uma plataforma de ódio já existente na extrema-direita (“pessoas trans são um perigo e precisam ser combatidas”), não existe o perigo de que essa extrema-direita ganhe mais força, mais fôlego e consiga posteriormente avançar em outras plataformas, como a restrição de direitos sexuais e reprodutivos para todas as mulheres e LGBTs?
Pois é, não precisa ser nenhum grande analista político para saber as respostas. Por isso, é inconcebível que em pleno 2024 ainda tenha gente que escolha (pois é isso, uma questão de escolha) não encarar J. K. Rowling como o que ela é: uma extremista que tem abraçado e impulsionado e financiado a nova extrema-direita. Um extremismo que não se parece com Jair Bolsonaro, mas com Michelle Bolsonaro. Não se parece com Donald Trump, mas com Giorgia Meloni. Não se parece com Ben Shapiro, mas com Candace Owens. Não se parece com Javier Milei, mas com Victoria Villarruel.
E essa semelhança entre todas elas não está no gênero ou no sexo, mas sim na utilização do seu lugar (mulheres ricas, carismáticas, privilegiadas e influentes politicamente e/ou culturalmente) para, através de discursos que dialogam diretamente com as mulheres, conseguirem sabotar os direitos delas.
“Será que é possível dizer quantos dos medos contemporâneos se concentram no terreno do gênero? Ou explicar como a demonização do gênero encobre e desvia a atenção de ansiedades legítimas quanto à destruição climática, à precariedade enconômica intensificada, à guerra, às toxinas ambientais e à violência policial - medos que, sem dúvida, temos razão em sentir ou cogitar? Quando o “gênero” absorve uma série de medos e se torna um fantasma totalizante para a direita contemporânea, as variadas condições que de fato dão origem a esses medos perdem seus nomes. O ‘gênero’ reúne e incita esses medos, impedindo-nos de refletir mais claramente sobre o que há a temer e como, para início de conversa, surgiu a atual percepção de que o mundo está em perigo.”
Judith Butler, em Quem Tem Medo do Gênero?
Esse texto é dedicado à cada pessoa trans que tombou, de forma covarde e violenta, em decorrência do ódio que ainda é espalhado na nossa sociedade contra nós, contra os nossos direitos, contra a nossa existência.
É dedicado especialmente à Brianna Ghey, que tinha 16 anos de idade quando foi brutalmente assassinada, na tarde de 11 de fevereiro de 2023, com mais de 20 facadas no rosto, num parque perto de sua casa, em Warrington, Inglaterra. Seus assassinos (um garoto e uma garota, da mesma idade que ela) ficaram semanas planejando o assassinato. Numa das mensagens o assassino disse “quero ver se aquilo [como se referiam à Brianna] vai gritar como homem ou como mulher”. Tanto Brianna quanto seus algozes, Scarlett Jenkinson e Eddie Ratcliffe, nasceram e foram criados no mesmo país que Joanne Rowling. Um país onde ela se tornou uma ídola de jovens, como eles. E hoje ela insiste em contaminar esses jovens - e também adultos - para que todos odeiem pessoas como Brianna. Brianna que, apesar do que disseram e do que tantos ainda dizem , não era “aquilo”, era uma pessoa. Um ser humano.
[te agradeço por ter lido o texto! essa newsletter é totalmente gratuita, mas caso queira apoiar meu trabalho de escrita, você pode clicar aqui. obrigada!]
Realmente é uma leitura necessária para quem ainda se diz fã da J.K. Só não entende quem está do lado dela nisso tudo.