democracias relativas
Só existem duas opções: ou os Estados Unidos não são uma democracia; ou sim, como disse Lula, o conceito de democracia é algo relativo
Em junho de 2023, o presidente Lula disse, em entrevista à Rádio Gaúcha, que o conceito de democracia “é relativo”. Como vocês sabem (ou, mesmo não sabendo, não é difícil de imaginar), Lula foi duramente criticado. Foram dias de paz no Brasil e no mundo, com guerras suspensas e fim da fome mundial, pois a grande imprensa brasileira ficou repercutindo apenas a declaração do presidente. Parecia que nada de mais grave ocorrria no mundo (quem dera).
Pois bem, apesar do ataque histérico dos liberais, Lula estava relativamente certo. Na sociologia e na ciência política se entende, há anos, que democracia não pode ser resumida à um unico modelo ou país. Democracia é o povo ir, de tempos em tempos, escolher seus representantes na urna? Democracia é apenas o fato de um país ter partidos políticos? E quantos partidos políticos são necessários? Atualmente, o Brasil conta com o número assustador de 29 partidos. Somos mais democráticos que os Estados Unidos, que conta com apenas 2 partidos que intercalam o poder entre si?
São muitas questões e nenhuma tem resposta simples. Mas uma informação é sim simples: não existe um modelo único de democracia. E nenhum país detém o monopólio desse conceito. Ou, ao menos, assim deveria ser.
Minha cabeça voltou para meados de 2023, quando Lula disse esse ~gigantesco absurdo autoritário inaceitável~, ao me deparar com o que está acontecendo agora em algumas das principais universidades dos Estados Unidos.
Começou por Columbia, a prestigiosa unidade de ensino da queridona Nova York: os estudantes ocuparam o gramado na frente da universidade, acampando em barracas e exigindo o fim das parcerias econômicas da instituição com empresas que financiam o governo israelense ou que investem grandes somas de dinheiro em israel.
Eu estava assistindo ao vivo a NBC News, quando apareceu uma jovem de óculos grandes com um cartaz escrito “nothing is more important than fight genocide”. Nada é mais importante do que combater genocídio. É verdade. E, se é verdade, então é fundamental parar de financiar quem promove e executa o genocídio.
O restante talvez você já tenha lido sobre. A diretoria da universidade chamou a polícia, a polícia prendeu vários alunos, o que mobilizou ainda mais estudantes, o acampamento em Columbia cresceu e logo passou a ser reproduzido em várias outras universidades. NYU, Yale, Harvard, University of Texas-Austin, MIT, Berkeley, Northeastern, Emory, USC, Michigan. Entre outras.
É importante dizer que essas universidades estão entre as melhores dos Estados Unidos. Algumas, entre as melhores do mundo. Os jovens que estudam nelas são, em sua grande maioria, filhos da elite estadunidense. Pessoas ricas, provavelmente com um amplo repertório cultural e internacional e que estão dando a cara à tapa (algumas vezes literalmente) em solidariedade à Palestina. Isso não deixa nenhuma dúvida de que israel perdeu o controle sobre a narrativa. Vários estudantes que estão organizando essas ocupações são, inclusive, judeus. Judeus que não aceitam terem a sua judaicidade sendo usada e manipulada para a defesa do massacre de milhares de inocentes.
Mas o fenômeno jovens ricos engajados em universidades estadunidenses não é algo novo. Desde os anos 60, essas mesmas instituições foram palco de grandes manifestações contra a guerra no Vietnã, contra a segregação racial e a favor dos direitos civis e contra a guerra no Iraque, além de incontáveis outros atos pelos direitos das mulheres e pelos direitos da população LGBTI+. A solidariedade internacional parece encontrar sempre terreno fértil em espaços universitários, isso não só nos Estados Unidos. Agora mesmo, na França, os campi das badaladas Sciences Po e da Sorbonne, em Paris, também estão ocupados em protesto contra o genocídio cometido por israel em Gaza.
Entretanto, o que tem chamado a atenção para além da beleza da solidariedade, é a feiura sempre presente na repressão policial. E a polícia não brotou sozinha nos campi, ela foi acionada pelas diretorias das universidades. Minouche Shafik, presidenta da Columbia University, é uma notória apoiadora de israel (assim como quase todas as pessoas que ocupam posições de muito prestígio no mundinho liberal, como ela que já foi vice-presidenta do Banco Mundial). E desde que começou os protestos dos estudantes ela tem se mostrado cínica e violenta (que, aliás, é praticamente o padrão de quem apoia israel), afirmando que não quer prejudicar os alunos ao mesmo tempo em que aciona a polícia para que os encarcere. Uma ficha criminal pode ser quase um fim de carreira para um jovem que deseja prosperar ainda mais dentro da lógica do sonho americano.
Chama muito a atenção como que a ideia de “liberdade irrestrita”, tão propagada nos Estados Unidos, seja uma grande falácia. É, na verdade, apenas mais uma peça numa grande indústria que depende muito de propaganda sobre si mesma. Um país onde supremacistas brancos e grupos neonazistas estejam rotineiramente se manifestando livremente, mas que protestos contra genocídios ou contra a morte de jovens negros pela polícia, sejam sempre reprimidos com muita força. O importante é manter o status quo, mesmo que esse estado das coisas signifique um regime desigual que privilegia grupos mais alinhados com a direita e com violências históricas contra grupos oprimidos.
Veja bem, eu não considero os Estados Unidos uma ditadura. Nem mesmo um Estado autoritário, pra além do autoritarismo que os Estados, todos eles ao redor do mundo, já carregam em si. Acho que os Estados Unidos são uma democracia, com diversas limitações, injustiças, desequilíbrios e intermináveis reproduções de violência. Assim como o Brasil, como o México, como a Austrália, como Portugal, como a Colômbia, como a Tailândia. Etc. Democracias liberais, incompletas e que abraçam uma parte da população, enquanto repelem, marginalizam e criminalizam os indesejáveis.
No entanto, o que difere os Estados Unidos dos outros, é que só ele se colocou (através da força, da opressão e da sabotagem política e/ou econômica de outros países) como grande guardião, defensor e porta-voz de ideias absolutas sobre liberdade, direitos humanos e, claro, democracia.
Anteontem, Karine Jean-Pierre, representante do governo estadunidense, disse que seu país se opõe a qualquer punição que israel venha a sofrer pelo Tribunal Penal Internacional, pois, na visão do país norte-americano, o tribunal não tem jurisdição para julgar ou punir o regime israelense. Porém, quando quem estava no banco dos réus era o governo russo, sob o escrutínio das suas ações na Ucrânia, a avaliação dos Estados Unidos era outra, totalmente oposta.
Seguindo a lógica estadunidense, até o conceito de justiça se torna relativo. Punição severa para os inimigos, proteção completa para os amigos, mesmo que ambos estejam errados.
“Por que os EUA glorificam as ditas forças pró-independência de Hong Kong como heroicas, mas chamam manifestantes desapontados com o racismo no seu país de arruaceiros?”. Essa pergunta foi feita por Zhao Lijian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China. O ano era 2020 e Lijian se referia à truculência das autoridades estadunidesnes com os manifestantes do Black Lives Matter, que realizavam manifestações exigindo justiça por George Floyd, covardemente assassinado por policiais brancos.
A pergunta do integrante do governo chinês nos leva a outras: por que os Estados Unidos se julgam propagadores dos direitos humanos, enquanto enjaula crianças latinas nos postos de detenção perto das fronteiras com o México? Por que nos Estados Unidos grupos como os Panteras Negras foram criminalizados e perseguidos, mas a KKK segue existindo sem ser incomodada?
As contradições estão postas. Nós podemos pensar “hmmm acho que esse antro imperialista não é tão democrático assim”, ou então “essa democracia tá cheia de falhas propositais, feitas para manter as desigualdades estruturais e para impedir qualquer ascenção de demandas que sejam profundamente transformadoras e populares.” Eu escolho a segunda opção, afinal, democracias são relativas. E as democracias liberais, vigentes na maior parte do Ocidente, são baseadas na injustiça capitalista.
Mas é importante entender que apontar as contradições dos Estados Unidos não é, necessariamente, o definir como um lugar cruel, medonho, automaticamente pior que outros lugares. Existem qualidades, belezas e virtudes também no solo yankee. A solidariedade dos estudantes universitários com a Palestina é só um desses exemplos positivos, mas existem inúmeros outros. A questão, pra mim, não é odiar os Estados Unido, pois não o odeio. O foco é romper com essa ideia de suposta perfeição e de superioridade, que tem servido de justificativa para o sofrimento de vários outros povos ao redor do mundo.
A democracia estadunidense não é melhor nem pior, é relativa.
COISA BOA: quando eu tava finalizando o texto, vi a notícia de que a Brown University, em Rhode Island, aceitou a demanda dos estudantes e vai propor uma revisão de todos os acordos que possui com empresas que investem em israel. É né, parece que lutar ajuda a transformar o mundo. Palestina livre! <3
[te agradeço por ter lido o texto! essa newsletter é totalmente gratuita, mas caso queira apoiar meu trabalho de escrita, você pode clicar aqui. obrigada!]
Que as manifestações pro Palestina alimentem a nossa luta pelos povos diaspóricos no Brasil e na América Latina, apesar de todas as brutais relatividades. Excelente texto, Lana!
Muito bom!!